domingo, 26 de junho de 2011

Perseguição

Era pra ser uma história de terror, sábio meu, uma história pra te fazer gritar.
Era me fazer encontrar nos menores detalhes do teu cotidiano: na cafeína na xícara de café, na dedicatória na primeira página de algum livro, na nicotina do maço de cigarros, no ácaro da sujeira. No bem-vindo do tapete na porta da entrada (eu era o bem-vindo no tapete da porta da entrada). Certeza que te poria medo.
Eu seria o vulto nas suas fotografias. E você olharia pra essas fotografias, ah sim, eu te faria olhar essas fotografias. Um dia, quando você chegar a casa, elas estariam espalhadas pelo chão e as paredes estariam marcadas com mãos de tinta negra. Certeza que você tremeria.
E quando você estiver no trânsito, eu estarei no carro ao lado. E quando você for nadar, eu estarei na raia vizinha. E quando você sair pra dançar, eu serei o DJ. E quando você for caminhar, serei eu a te perseguir. Certeza que eu conseguiria.
E se você estivesse sozinho, eu externalizaria seus medos. Eu seria a chuva, o raio, o escuro. Eu seria o vento que apaga a vela. Eu seria os passos que você escuta enquanto adormece. E quando você se cansasse e finalmente me encarasse com os olhos cheios de lágrimas, aí sim, eu teria certeza.
Eu saberia.
Não era terror seu.
No fim, era desespero.
Meu.

02. I Follow Rivers

sábado, 21 de maio de 2011

Sorrow

Neste pequeno quadrado de paredes vermelhas a imensidão.
Imensa.
E pensa.
Em todas as possibilidades
palpáveis, possíveis, críveis
mas emergem do subterrâneo somente palavras ao pensamento
não a boca
E surgem tantas imagens num estado febril projetadas como um filme de Lynch
impalpáveis, impossíveis, incríveis
Tantos signos
subjetivos
subvertidos
Que me calo
Meu devaneio da madrugada é o silêncio!
Este sou eu
raiz agarrada a terra
olhando o ar se expandindo
livre
observando a troca
das luzes neon
através da janela minimamente entreaberta
amigável
mas não amigo
Este sou eu
coração de artéria entupida
texto de linha quebrada.

02 Sorrow

sábado, 16 de abril de 2011

nalgum lugar em que eu nunca estive, alegremente além

nalgum lugar em que eu nunca estive, alegremente além
de qualquer experiência, teus olhos têm o seu silêncio:
no teu gesto mais frágil há coisas que me encerram,
ou que eu não ouso tocar porque estão demasiado perto

teu mais ligeiro olhar facilmente me descerra
embora eu tenha me fechado como dedos, nalgum lugar
me abres sempre pétala por pétala como a Primavera abre
(tocando sutilmente, misteriosamente) a sua primeira rosa

ou se quiseres me ver fechado, eu e
minha vida nos fecharemos belamente, de repente,
assim como o coração desta flor imagina
a neve cuidadosamente descendo em toda a parte;

nada que eu possa perceber neste universo iguala
o poder de tua imensa fragilidade: cuja textura
compele-me com a cor de seus continentes,
restituindo a morte e o sempre cada vez que respira

(não sei dizer o que há em ti que fecha
e abre; só uma parte de mim compreende que a
voz dos teus olhos é mais profunda que todas as rosas)
ninguém, nem mesmo a chuva, tem mãos tão pequenas

e. e. cummings

terça-feira, 8 de março de 2011

Mais um poema de amor

Naquela vez que desci ao porão da sua casa escutei poemas de amor absurdo-não o amor, e sim os poemas-declamados por alguém que eu não sabia quem, podia ser até você, já que nunca te escutei falar mesmo. Sentei num canto escuro já pensando na cerveja que ia tomar e no cigarro que ia inalar, quando as luzes se acenderam e uma figura com maquiagem pesada e borrada surge, com cabelos pretos lisos e enormes amarrados em um trança única jogada pra frente do corpo. Só poemas de amor eu ouvia repetidamente com meu sorriso de escárnio a posto esperando escutar “pau” e “vagina”-voilá- e a tão famosa rima. A rima. Desde quando amar é rimar? Amar é encaixar, não são essas palavras que harmonizam, são aquelas que complementam. É cérebro. É prosa. É árduo. Não é o céu, é o deserto. Não é siamês, é criar uma ponte na distância. Sinceramente, você. Com suas Neusas ignorantes, mas amáveis. Com suas musas de sarjeta, mas fogosas. Traga mais uma cerveja. Bata mais uma salva de palmas. Declame mais uma besteira. Deguste mais um poema de amor.
Estranho, não era aquela forma decadente quem falava apenas me encarava com aqueles olhos borrados. O que eu escutava não partia dela. Quem era esse interlocutor? Quem ouvia? Quem criticava?
E foi quando escutei a figura falar pela primeira vez:
- E você que nunca escreveu poemas de amor?
E eu?
As luzes lentamente apagando ou minhas pálpebras fechando.
“Neusa,
Neusa,
Neusa,
pudor,
amor...” – Calma, já estou chegando.

sábado, 26 de fevereiro de 2011

A estratégia da aranha

Dançando como Iansã lança suas teias psicológicas a aranha. Rodopiando a realidade seu fio cristalino envolve. Pela saliva pelo vermelho dos olhos em direção a rede atraído. Segue pela perfeição pelos ângulos simétricos absorto. Armadilha sob vital disfarce. Sepultado em egoísmo a mercê jaz iludido. Sarcófago dos anseios alheios força para ego.
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Não se preocupe.
Um dia ela construíra um para você.